Dispensando a Tropa…para preservar o Estado Democrático de Direito

15/04/2008 14h45 - Atualizado em 15/04/08 14h45

 

O filme Tropa de Elite, recentemente lançado nos cinemas do país, tem sido recebido com grande entusiasmo pela população e provocado as mais calorosas discussões entre os operadores do Direito Penal. Sob vários aspectos, a obra de ficção nos convida à reflexão ao mesmo tempo em que nos desafia a compreensão sobre qual seja a polícia que serve aos nossos interesses. A premissa da discussão parece óbvia: a polícia existe para nos proteger e não para nos torturar ou matar. Mas, quando se pensa na tropa as coisas não são assim tão simples. Muitas pessoas acreditam que existe um trabalho sujo e necessário a ser feito em favor da sociedade e que só a tropa é capaz de fazê-lo. Contudo, vale observar que a defesa da tortura ou da morte como ações policiais necessárias à manutenção da ordem pressupõe a idéia de que estes fatos somente acontecem com os filhos dos outros, e nunca com os nossos.

O cidadão menos esclarecido não compreende a sua polícia com base na idéia do Estado Democrático de Direito, pois esta noção abstrata lhe é muito distante. É a violência urbana que lhe bate às portas todos os dias e a Constituição Federal não é capaz de evitar a guerrilha que se instaurou nos ambientes mais pobres das grandes cidades. Envolvido em um universo hostil, que apresenta variadas formas de violência, inclusive as institucionais, o cidadão pobre não sabe que é e nem mesmo o que seja ser um cidadão. Sua compreensão mais imediata do cotidiano o impede de distinguir a milícia da polícia, o que o leva a solidarizar-se com o herói bandido (como se as noções pudessem se conciliar) que veste farda.

No plano formal e ideal da ordem jurídica, a polícia presta aos cidadãos os serviços estatais de garantia ao direito fundamental à segurança pública. O poder público tem o dever de proteger a todos e, para tanto, desenvolve atividades de polícia preventiva (polícia militar) e repressiva (polícias civis, estaduais ou federal). Como corolário do dever de proteger por meio da polícia, o Estado ainda tem o dever de depurar suas instituições policiais, excluindo das corporações aqueles agentes que violam a planificação normativa. A exclusão de policiais, por desempenho inadequado de suas funções, é medida que se impõe face ao princípio da eficiência da Administração Pública e se presta ao escopo de proteção do cidadão. Tratando-se de excluir da corporação o herói bandido, a defesa do cidadão deve ser exercida ainda que este não a compreenda. Entretanto, não deveria haver qualquer dúvida: o Estado Democrático de Direito exige a dispensa do policial que tortura ou mata de maneira ilícita aqueles a quem deveria proteger.

A propósito das hipóteses levantadas pelo filme, a exclusão dos policiais militares apresenta peculiaridades que são desconhecidas do grande público e mesmo de alguns operadores do Direito. Neste aspecto, torna-se necessário distinguir a exclusão que é decorrente da aplicação do Direito Administrativo sancionador da que decorre de condenação criminal.

Ao tratar das forças armadas da União, a Constituição Federal, nos incisos VI e VII do § 3° de seu art. 142, determinou que: o oficial só perderá o posto e a patente se for julgado indigno do oficialato ou com ele incompatível, por decisão de tribunal militar de caráter permanente, em tempo de paz, ou de tribunal especial, em tempo de guerra e, ainda, que: o oficial condenado na justiça comum ou militar a pena privativa de liberdade superior a dois anos, por sentença transitada em julgado, será submetido ao julgamento previsto no inciso anterior.

A princípio, a indignidade e a incompatibilidade para com o oficialato são apuradas por meio de processo administrativo disciplinar, que é remetido ao Tribunal Militar para decisão sobre a exclusão (Lei Federal n. 5.838/1972). A garantia de julgamento da infração administrativa por órgão do Poder Judiciário decorre de previsão constitucional e não se estende às praças, sejam das forças armadas da União ou dos Estados.

Por outro lado, a condenação criminal a uma pena privativa de liberdade superior a dois anos, seja na Justiça Comum ou Militar, submete o oficial a julgamento para averiguar a indignidade ou incompatibilidade para com o oficialato. Nestes casos, o efeito da condenação criminal sobre a situação administrativa do oficial somente poderá ser imposto por meio de processo judicial especial perante o Tribunal Militar.

O art. 42 da Carta Magna determina que, aos militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, aplicam-se as disposições do art. 142, § 3º. Contudo, ao tratar da Justiça Militar estadual, os parágrafos 3° e 4° do art. 125 da CF conferem ao Tribunal de Justiça ou ao Tribunal de Justiça Militar, conforme preveja a organização judiciária estadual, a competência para decidir sobre a perda do posto e patente dos oficiais e também sobre a perda de graduação das praças. Não há dispositivo constitucional que defina os casos em que a praça poderá perder a graduação, mas o princípio da isonomia indica que o julgamento também tem como pressuposto uma condenação criminal, na Justiça Comum ou Militar, à pena privativa de liberdade superior a dois anos (inciso VII do § 3° do art. 142).

O julgamento administrativo ou judicial sobre a exclusão do policial militar não se confunde com o julgamento sobre a prática da conduta inadequada (transgressão disciplinar ou crime) e deve se pautar pela proteção ao interesse público relacionado à maior eficiência dos serviços estatais relacionados à segurança pública. No caso, o interesse prevalente é o de preservar a qualidade dos recursos humanos pertencentes à instituição militar, devendo ficar em segundo plano as considerações sobre a necessidade de punição do militar envolvido.

Assim, por mais simpático que o personagem do Capitão Nascimento possa parecer, em atenção aos postulados do Estado Democrático de Direito, os policiais militares que trabalham orientados por sua lógica devem ser excluídos da corporação.

 

 

FERNANDO A. N. GALVÃO DA ROCHA

Juiz Civil do Tribunal de Justiça Militar de MG

Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UFMG