Crime mais antigo no arquivo do TJMMG completa 100 anos

06/03/2023 17h51 - Atualizado em 06/03/23 18h13

O dia era 22 de fevereiro de 1923. Naquela data, o subdelegado de polícia do Arraial de São João do Vigia (povoado pertencente à cidade de Araçuaí, distante 678km de Belo Horizonte e então capital do Nordeste de Minas) foi surpreendido com o pedido de socorro de um soldado atingido por um tiro de arma de fogo, que pouco depois veio a óbito. O acusado pelo disparo era outro militar.

Em 2023 completou-se 100 anos deste que é o caso mais antigo no arquivo do Tribunal de Justiça Militar do Estado de Minas Gerais (TJMMG), e suas páginas, manuscritas, relatam não só um crime, mas retratam todo um contexto histórico que remonta a um passado centenário com outra realidade bem diferente dos dias atuais, seja pelos costumes da sociedade, seja pela própria dinâmica do poder judiciário à época.

Segundo relato do subdelegado, o soldado ferido chegou à sua residência às 23h “ofendido por tiro de arma de fogo, pedindo socorro, e momentos depois morreu”. Para fazer corpo de delito, e “na falta de profissionais”, o subdelegado nomeou dois cidadãos – um coronel e um negociante – e mais duas testemunhas para “fazer exame no cadáver do morto (…)” e para, posteriormente, na própria residência dele e perante sua autoridade, “descreverem o auto e o corpo de delito”. No mesmo dia o soldado autor do disparo foi preso e recolhido na “casa de prisão”, tornando-se réu confesso.

A denúncia foi oferecida no Juízo Municipal de Jequitinhonha/MG em 24 de junho de 1924. Segundo o documento, “o denunciado em tal procedimento cometeu o crime previsto no artigo 294 do Código Penal”. À época estava em vigor o Decreto n° 847, de 11 de outubro de 1890, segundo o qual, no artigo 294, o crime de “matar alguém” previa pena de prisão celular por 12 a 30 anos, se tivesse agravantes e, em não os tendo, pena de prisão celular por 6 a 24 anos.

Ao longo de quase três anos foram expedidos mandados de citações às testemunhas do fato, os quais somente obtiveram êxito de cumprimento no final do ano de 1925. Entre os anos de 1926 a 1928, muitas enchentes marcaram a região do Vale do Jequitinhonha, pelo transbordamento do rio do mesmo nome, o que ocasionou a destruição inclusive de prédios daquela época. Por esses acontecimentos, o processo foi retomado somente em março de 1931, com determinação para localização do réu, porém consta nos autos que o comandante-geral da Força Pública à época anunciava que havia, dos registros da corporação, dois militares com o mesmo nome e somente seria possível a informação através das características físicas do militar em questão”.

Em tempo: o primeiro Registro Geral (RG) emitido no Brasil data de 1907, portanto ainda era uma novidade no ano daquele crime. Os primeiros RGs já possuíam o nome, a filiação e as impressões digitais, porém, uma vez que registros fotográficos eram raros, o documento passou a ter também a descrição física do cidadão (tais como cor da pele e dos olhos, marcas particulares, cicatrizes e tatuagens), e ainda informações como profissão e endereço da pessoa. No processo em questão não há documentos pessoais de identificação, seja RG ou registro militar, o que dificultou sobremaneira a identificação do autor do crime perante a justiça.

Justiça Militar entra no caso

A Lei Federal n. 192, de 17 de janeiro de 1936, autorizou a organização da Justiça Militar nos estados. Em Minas Gerais, ela foi criada pela Lei n. 226, de 9 de novembro de 1937, composta apenas de um auditor e de conselhos de justiça especiais ou permanentes. Na falta de um órgão próprio de segundo grau, a jurisdição era exercida pela Câmara Criminal da Corte de Apelação, hoje Tribunal de Justiça.

A Constituição da República de 1946 posicionou a Justiça Militar estadual como órgão do Poder Judiciário dos Estados, e previu a criação de órgãos de Segunda Instância, ou seja, os Tribunais Militares. Antes disso, em 11 de setembro de 1942 o Ministério Público manifestou-se pela competência do julgamento do homicídio pela Justiça Castrense, tendo como característica a condição especial de tanto o autor quanto o réu serem militares – manifestação essa feita 27 anos antes da publicação do artigo 9° do Código Penal Militar, de 1969, que passa a considerar, em seu artigo II, “crimes militares, em tempos de paz, os crimes quando praticados por militar em situação de atividade ou assemelhando contra militar na mesma situação ou assemelhado”.

“Sendo, a meu ver, incompetente a justiça comum para tomar conhecimento do presente crime, uma vez que trata-se de um delicto (sic) militar, dada a circunstância de réu e vítima serem ambos militares, em vista do que dispõe o artigo 88, letra ‘m’, do Código da Justiça Militar e do acórdão da 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Apelação (…), que diz ‘todo crime cometido por um militar contra outro militar é sempre militar”, avalia o Ministério Público, “requeiro sejam estes autos encaminhados à Auditoria da Força Policial do Estado”.

Em 14 de setembro de 1942, o processo foi remetido do Vale do Jequitinhonha para a Justiça Militar com sede em Belo Horizonte, e foi distribuído na Corte em 23 de fevereiro de 1943. Em 3 de março daquele mesmo ano, quase 20 anos após a denúncia, o Conselho Permanente de Justiça acatou por unanimidade o parecer da promotoria pela decretação da prescrição do processo crime.

“Naquela época um homicídio simples, como o caso desse em questão, a pena era de 6 a 24 anos. Hoje, no Código Penal Militar vigente, o homicídio simples tem pena de 6 a 20 anos. Mas se a pena é praticamente a mesma, as mudanças foram imensas com relação ao aspecto processual, às condições de investigação dos crimes, à resposta que o Estado tem que dar em relação à rapidez”, explicou o presidente do TJMMG, desembargador Rúbio Paulino Coelho, à reportagem do jornal “Estado de Minas”, sobre os 100 anos do crime.

“Hoje, se o militar comete um crime contra outro militar, em 24 horas o auto de prisão em flagrante já está presente na Justiça Militar, em 24 horas já é de conhecimento do Ministério Público e a partir daí há toda uma transparência pela facilidade que se tem, com a tecnologia da informação, de os órgãos acompanharem passo a passo, de forma atualíssima, todos os movimentos desse processo”, detalhou. “Em um julgamento hoje na Justiça Militar Estadual, em primeiro grau, o processo todo leva aproximadamente um ano para se fazer o inquérito, a denúncia, para que haja a audição das testemunhas, do indiciado, o julgamento em si. Melhorou muito, e não corremos mais esse risco de prescrição de crimes dessa natureza”, assegurou o presidente.

E a previsão é que esse tempo seja ainda cada vez mais célere. “Também estamos caminhando com um projeto para que, no momento em que esse processo se inicia na Polícia Militar e no Corpo de Bombeiros Militar, imediatamente isso já seja de conhecimento da Justiça Militar e do Ministério Público, graças a uma integração entre sistemas. Essa iniciativa é inédita no Brasil e, se Deus quiser, até o final do ano estaremos com tudo pronto, o que vai agilizar ainda mais, porque no momento do termo de abertura do inquérito ou do auto de prisão em flagrante lá na Polícia Militar ou no Corpo de Bombeiros Militar, imediatamente estará no computador do Ministério Público e da Justiça Militar. Por exemplo: quando a polícia estiver ouvindo um tenente lá na Polícia Militar, o Ministério Público já estará sabendo que ele está sendo ouvido e vai poder acompanhar a tempo e a hora, o que dará agilidade quando o caso for remetido para a Justiça Militar”.

Para saber mais sobre o caso, leia a reportagem do Estado de Minas aqui.

Texto: Esperança Barros
Secom/TJMMG