A conformidade dos regulamentos disciplinares com a Constituição Federal

30/11/2009 11h23 - Atualizado em 30/11/09 11h23

 

ANTONIO LUIZ DA SILVA

Bacharel em Direito pela UFMG
     Pós-Graduado em Ciências Penais pela PUC – Minas
     Chefe de Gabinete do Presidente do TJMMG

O Exército Brasileiro, a Marinha e a Força Aérea, bem como as Forças Auxiliares constituídas pelas Polícias e Corpos de Bombeiros Militares do Brasil, guardam similitude em seus regulamentos disciplinares, com algumas diferenças em função das peculiaridades no desempenho de suas atribuições.
     A quase totalidade dos regulamentos disciplinares militares brasileiros prevê, como uma das manifestações de eficiência e efetividade nas atividades, ações e operações empreendidas por suas Instituições, o dever de obediência pronta às ordens legais e o cumprimento das leis e normas emanadas pelo ordenamento jurídico vigente.
     A atividade policial militar é desenvolvida com peculiaridades próprias, compartilhando-se ideias, valores e crenças para a proteção da vida, do patrimônio público e particular e da manutenção da ordem pública. Se claudicarem estes princípios, corre-se o risco destas corporações se transformarem em bandos armados, sem o controle efetivo do Estado, em desfavor da própria sociedade.
     Referindo-se ao dever de obediência, Valla (2003, v. 2, p. 119) adverte que, em princípio, somente à lei é que se deve obediência. Mas existem circunstâncias especiais, decorrentes da hierarquia e da disciplina, em que a obrigação não se esgota na lei e se prolonga na ordem dada pelo superior hierárquico. Disso decorre que aquele que recebe uma ordem tem o direito e o dever de apenas analisar se o autor do ato é competente para emaná-lo, se presente entre eles a relação de dependência hierárquica sobre a qual se funda o dever de obediência, e se a ordem se revestiu de legalidade.
     É importante ressaltar que sempre existiram os regulamentos disciplinares de cada força, em todos os países civilizados. Em face da evolução de toda sociedade, é natural que estes regulamentos passem por atualizações que sejam apropriadas aos novos tempos, sem deixar de manter uma estrutura adequada, em razão das peculiaridades da disciplina militar a ser aplicada à força que o regulamento irá tutelar.
     Constituem circunstâncias elementares nas relações dos militares o respeito, a consideração, a camaradagem e o acatamento pronto às ordens legais dos superiores hierárquicos. Assim, a disciplina e a hierarquia são os pilares básicos das instituições militares, de onde decorre o dever de obediência. A falta de previsão destes atributos nas leis e regulamentos ou a manifestação clara de subvertê-los inviabilizam o funcionamento destas corporações, pois ferem de morte suas duas vigas mestras de sustentação, a hierarquia e a disciplina.
     Há que se fazer, inicialmente, uma distinção entre o crime militar e a transgressão disciplinar para verificar-se a conformidade dos regulamentos disciplinares em relação à Carta de 88.
     Os crimes militares estão tipificados no Código Penal Militar. As transgressões disciplinares são tratadas nos regulamentos e correspondem à violação das obrigações e deveres para com a administração, caracterizando falta disciplinar, também denominada de contravenção disciplinar. Na verdade, a principal diferença entre o crime e a transgressão militar está na intensidade da referida violação. Os crimes violam os bens jurídicos tutelados na lei penal e as transgressões contrariam os preceitos da ética militar, previstos nos regulamentos disciplinares.
     O art. 5º, inciso LXI, da Constituição Federal de 1988, admite, indiretamente, os regulamentos disciplinares, ao se referir à transgressão militar e aos crimes propriamente militares, definidos em lei, não sendo possível a definição de tipos penais em decretos federais e estaduais. A ofensa constitucional torna-se ainda mais clara, a partir do exame do princípio da recepção de normas, que estabelece que toda ordem normativa proveniente de constituições anteriores é recepcionada pela Carta Magna em vigor, desde que com ela seja materialmente compatível. Considera-se, assim, que a norma recepcionada passou a se revestir da forma prevista pelo texto constitucional para a matéria.
     Os decretos vigentes antes da Carta de 1988, que não colidiam com a nova ordem constitucional, foram recepcionados com o status de lei ordinária ou complementar. Esse paradoxo entre a força infralegal (decreto) e a força material (lei) suscita o grande questionamento em como se proceder para alterar essa norma diante do novo regime constitucional.
     Prevalece o entendimento de que, se um decreto foi recepcionado como lei ordinária, somente poderá ser alterado por outra lei ordinária, de igual hierarquia. Há um questionamento sobre a constitucionalidade do Decreto n. 4.346/2002 (Regulamento Disciplinar do Exército), que alterou o Decreto anterior de n. 90.608/1984. Se o anterior foi recepcionado pela CF/88 como lei ordinária, só poderia ter sido alterado por outra lei ordinária.
     Para Martins (1996), a questão que se traz à colação é da maior importância, dado que, na atualidade, todas as transgressões militares estão definidas em decretos e não em lei, o que, para o autor, importa na inconstitucionalidade de todas as prisões motivadas por transgressões disciplinares. O autor admite a possibilidade de os regulamentos disciplinares serem editados por decretos, desde que não definam condutas ensejadoras de prisão pelo cometimento de transgressões disciplinares.
     O art. 59 da CF/88 só aceita os regulamentos disciplinares e leis que forem aprovados através da elaboração do processo legislativo brasileiro. Em Minas Gerais, o então Decreto n. 23.085/1983 (Regulamento Disciplinar da Polícia Militar de Minas Gerais), revogado pela Lei n. 14.310/02 (Código de Ética e Disciplina dos Militares do Estado de Minas Gerais), embora recepcionado pela Constituição Federal, com o advento da nova lei, tornou inconstitucional a prisão disciplinar.
     Observa-se que, hoje, no Brasil, existem regulamentos editados tanto sob a forma de decretos, como de leis ordinárias e, até mesmo, leis complementares.
     Os decretos, apesar de terem força inferior às leis, têm como vantagem refletir os anseios da Instituição Militar, pois recebem influência direta dos interessados. O seu processo de elaboração é mais célere e fácil. É mais flexível para se adequar às mudanças da Lei Maior e não sofre a interferência das discussões de um processo legislativo, que fica, às vezes, desfigurado pelo excessivo número de emendas oriundas dos parlamentares.
     As desvantagens dos decretos é conferir grande poder ao chefe do Poder Executivo, que pode enfraquecê-los, se lhes der um trato ideológico com inovações que nem sempre atendem aos interesses da corporação, bem como levar ao autoritarismo, se lhes aplicar rigor excessivo. Assim, os decretos possibilitam mudanças constantes, que podem não ser coincidentes com os interesses da Instituição Militar.
     As leis, com força superior aos decretos, têm vantagens como a rigidez formal e a diminuição do poder do Chefe do Executivo diante das emendas apresentadas. Porém, apresentam a desvantagem de passarem por um processo legislativo demorado, que envolve forças políticas diversas. Considerando-se as vantagens e desvantagens, tem-se como complicação o fato de que, se por um lado, a lei boa permanece vigente por um período maior, uma vez que seu processo de revogação ou revisão é mais trabalhoso; por outro lado, a lei ruim, igualmente, vigora por longo tempo, pois sua revisão ou revogação também é complexa.
     Em quase todas as instituições militares é previsto, no caso de cometimento de graves transgressões disciplinares, a pena de prisão disciplinar, a cargo do respectivo comandante com responsabilidade sobre o seu subordinado. São casos extremos em que a administração militar dispõe para coibir as transgressões e atos desonrosos, ofensivos à dignidade dos militares e atentatórios contra as instituições, como forma de desestimular a indisciplina coletiva da tropa e dar uma pronta resposta à sociedade pelos desvios cometidos, por aqueles cuja profissão é combatê-los.
     No caso específico dos militares estaduais, as autoridades administrativas podem decretar a prisão disciplinar de seus comandados, mas este ato requer o preenchimento das formalidades estabelecidas em lei.
     A transgressão, para efeito de estudo, pode ser comparada a uma contravenção, uma vez que se refere ao descumprimento de uma norma administrativa, em obediência aos preceitos de hierarquia e disciplina, desde que não constitua crime.
     No Estado Democrático de Direito, a liberdade é a regra e a prisão, uma exceção. Antes da Constituição Federal de 1988, as transgressões disciplinares eram estabelecidas através de Decretos do Executivo Federal ou Estadual, que foram recepcionados pela Carta Magna como leis. As modificações posteriores a 1988 só podem ocorrer por meio de leis provenientes do Poder Legislativo.
     Diversos regulamentos disciplinares estabelecidos por decretos, no Brasil, estão sendo discutidos por sua inconstitucionalidade. Os Estados de Minas Gerais e São Paulo, seguindo o comando constitucional, já estabeleceram os seus novos regulamentos através de lei, o que deve ser seguido pelos demais Estados-membros da Federação.
     Como se percebe, a liberdade é um direito fundamental do cidadão brasileiro, nato ou naturalizado, civil ou militar, que somente pode ser cerceada por meio de uma decisão judicial, proveniente de uma autoridade judiciária competente ou, em caso de prisão em flagrante, conforme dispõem o Código de Processo Penal comum (CPP) e o Código de Processo Penal Militar (CPPM). As prisões cautelares e processuais são uma exceção no Estado de Direito.
     Para Rosa (2002), a prisão administrativa não deve ser um instrumento de coação, mas uma medida excepcional, devendo ser asseguradas ao infrator todas as garantias processuais, para que o cerceamento de liberdade possa ser revisto pelo Poder Judiciário, que é o guardião dos direitos e garantias do cidadão.
     Jorge César de Assis (2007) não vê a prisão administrativa militar como antidemocrática. Ele sustenta que, pela própria natureza do serviço militar, que detém o uso da força, há necessidade de se controlarem, de maneira rápida e eficaz, os graves desvios de conduta, sob pena de a sociedade pagar um preço alto demais pelos excessos que forem cometidos.
     A Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 – Pacto de São José da Costa Rica – em seu art. 7º, item n. 2, dispõe sobre prisão disciplinar militar: “Ninguém pode ser privado de sua liberdade física, salvo pelas causas e nas condições fixadas pelas Constituições políticas dos Estados – partes ou pelas leis de acordo com elas promulgadas".
     Se a prisão disciplinar militar brasileira está prevista tanto na Constituição Federal como nos regulamentos disciplinares, é aceita também pelas convenções internacionais, desde que definida em lei. Ela é mais do que válida e necessária. É um instrumento importante de preservação da disciplina e da hierarquia, em benefício da própria sociedade.

 

Hipóteses Constitucionais de Privação de Liberdade

A liberdade do indivíduo consiste em uma das maiores conquistas do Direito Constitucional. A Magna Charta Libertatum, outorgada por João Sem Terra, em 15/06/1215, na Inglaterra, em seu item 39, já estabelecia:

Nenhum homem livre será detido ou sujeito à prisão, ou privado de seus bens, ou colocado fora da lei, ou exilado, ou de qualquer modo molestado, e nós não procederemos nem mandaremos proceder contra ele senão mediante um julgamento regular pelos seus pares ou de harmonia com a lei do país.

A Constituição Federal Brasileira de 1988, em seu art. 5º, inciso LXI prevê:
Art. 5º […] 
LXI – ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei;
[…]

Com este comando constitucional, a nossa Carta de 88 restringiu a decretação de prisão por autoridade competente. Diferentemente do que ocorreu nas constituições anteriores, na atual, somente o Poder Judiciário pode emanar ordem de prisão, ou convalidá-la, não tendo havido recepção das normas infraconstitucionais que permitiam tal conduta à autoridade administrativa.
O art. 282 do CPP assim se apresenta:

Art. 282. À exceção do fragrante delito, a prisão não poderá efetuar-se senão em virtude de pronúncia ou nos casos determinados em lei, e mediante ordem escrita da autoridade competente.

Percebe-se, em face do princípio da reserva legal, que constitui pressuposto constitucional implícito, a expressa previsão legal das hipóteses ensejadoras dos casos de cerceamento da liberdade de algum indivíduo. No Direito brasileiro podemos distinguir cinco espécies de prisão, que só podem ser decretadas a partir da Constituição de 1988, pelo Poder Judiciário, conforme se segue:
a) prisão penal: decorre de sentença condenatória transitada em
 julgado (pena privativa de liberdade);   
b) prisão processual: que engloba as prisões temporárias, preventivas,
    flagrante delito, resultantes de pronúncia e de sentença condenatória
    recorrível;   
c) prisão administrativa: é o caso do estrangeiro extraditado (quando a
    decisão estiver deferida);  
d) prisão civil: é aquela decretada pelo Poder Judiciário, na hipótese de
    inadimplência de dívida de alimentos; e
e) prisão disciplinar: ocorre nos casos de transgressão de militar.

A CF/88 condicionou a perda da liberdade a determinados pressupostos, revelando que as prisões seriam, a partir de então, verdadeira exceção. As denominadas prisões para averiguações tornaram-se insubsistentes e passaram a ser passíveis de responsabilização civil (indenização por danos morais), criminal (abuso de autoridade – Lei n. 4.898/65) e por ato de improbidade administrativa (Lei n. 8.429/92 – art. 11, caput e inciso II).
No caso específico das transgressões militares ou crimes propriamente militares, definidos em lei, a Constituição Federal excetuou a necessidade de flagrante delito ou ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente para a ocorrência da prisão. O militar somente poderá ser detido na forma do artigo 18 do CPPM, nos crimes próprios, em atendimento ao art. 5º, inciso LXI, da Constituição Federal.
Assim, é facultado ao Comandante Militar manter o indiciado detido por 30 dias, prorrogáveis por mais 20 dias, com expedição de mandado, conforme o art. 225 do CPPM, comunicando-se o fato imediatamente à autoridade judiciária militar, que exercerá o controle da legalidade da prisão, nas condições dos artigos 255, 260 e 261 do CPPM.
A autoridade policial militar deve exercer de forma regrada sua competência prevista no art. 18 do CPPM, sob pena de cometer o crime de abuso de autoridade. 
Com este permissivo constitucional, afasta-se a possibilidade do cometimento de ilegalidades e arbítrios no regime castrense, ficando a autoridade administrativa absolutamente proibida de decretar a prisão disciplinar, sem a convalidação da autoridade judiciária competente.


11. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARRUDA, João Rodrigues. A disciplina em Xeque. Rio de Janeiro, ago. 2000. Disponível em: <www.cesdim.org.br/temp.aspx?PaginalD=112>. Acesso em: 15 ago. 2000.


     ASSIS, Jorge César de. Código de Processo Penal Militar Anotado 2. ed. Curitiba: Juruá, 2007.


     ASSIS, Jorge César de. Lições de direito para a atividade das polícias militares e das forças armadas. 6. ed. Curitiba: Juruá, 2006.


     DUARTE, Antonio Pereira. Direito Administrativo Militar. Rio de Janeiro: Forense, 1995.


     MINAS GERAIS. Lei Estadual n. 14.310, de 19 jun. 2002. Dispõe sobre o Código de Ética e Disciplina dos Militares de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2002.

MARTINS, Eliezer Pereira. Direito Administrativo Disciplinar Militar e sua Processualidade. Leme: Editora do Direito, 1996.


     MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2006.


     VALLA, Wilson Odirlei. Deontologia Policial Militar – Ética Profissional, 3. edição, Publicações Técnicas da Associação da Vila Militar, vol. II, Curitiba, 2003. p.119.


     ROSA, Paulo Tadeu Rodrigues. Direito Administrativo Militar – Teoria e Prática. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2003.